O Aniversário de Clarice Lispector nos Lembra: ninguém nasce pra ser feliz

Clarice na sala de seu apartamento no Leme, Rio de Janeiro. A foto foi tirada por Claudia Andujar, em 1961

Chovendo no molhado anuncio o que já corre solto pelas curvas impalpáveis da Internet: se viva, Clarice Lispector completaria na manhã de hoje belos 90 anos. Reconhecedor que sou da importância maiúscula de Clarice para a nossa prosa e admirador contumaz de sua personalidade incrivelmente lúcida sou, não obstante, um quase desconhecedor de sua obra. Pretendo ser breve neste post a fim de (como manda a prudência) não cutucar minha própria ignorância com vara curta. Não tecerei nenhum comentário sobre algo de específico em sua obra que, como disse, desconheço em profundidade. Meu comentário diz respeito ao sentido geral de sua produção, algo que faz de Clarice uma escritora digna de ser lida e que se refere a uma postura oposta à índole comum da nossa humanidade: a de esconder o rosto sob o travesseiro da ilusão e sob o mesmo dormir o profundo sono da animalidade onde se sonha enganosa e falivelmente com a felicidade.

As pessoas querem ser felizes. O tempo inteiro, a cada instante, interminavelmente. Tal experiência é esperada  hoje por todas as pessoas em todos os níveis, individual e social (com o novo laço social que se desenha) e reforçada pela produção das drogas da felicidade e por uma imersão midiática numa atmosfera de euforia onde todos os bens necessários à nossa plena satisfação estão à venda numa série interminável de coisas ofertadas sobr essa égide. Há hoje uma espera constante e permanente por uma vida isenta de perdas, traumas, violência, frustrações, lesões, engano. Enquanto há outro há dor (diria Freud se perguntado hoje sobre o sentido geral de uma de suas obras maiores: O Mal Estar na Civilização). Falando em Freud, aliás, não podemos esquecer do que este disse sobre a literatura que é o reino onde impera soberano o Princípio do Prazer, afirmação que não deve ser confundida com a idéia de fruição (isso seria entender superficialmente a terminologia freudiana, embora não fosse de todo incoerente com a função a-pragmática da arte e do que faz Clarice com sua pena majestosa). Completamente de acordo com a arte-epifania, todas as obras de Clarice que tive contato são tramas tecidas pelo fio do conflito e do trauma, dito em uma única palavra: do Trágico. Talvez seja esse o critério que mais facilmente nos ajude a distinguir os gigantes intelectuais dos meros vendedores de livros (os celebrados best sellers): na nossa história estética nenhuma obra cunhada sob uma atmosfera edificante com personagens felizes sempre emitindo bons exemplos resistiu à prova do tempo. A vassoura da história felizmente varre de nossa memória obras irrelevantes não condizentes com a dimensão mais elementar da vida, aquelas que não são feitas sob a proposta de um trilhar sobre nossas veredas mais intimas: o ouro verdadeiro só se prova no fogo (já diz um antiquíssimo ditado Hebreu). Mesmo as histórias feitas para as crianças, como analisa Bruno Bettelheim no seu Psicanálise dos Contos de Fadas, são metáforas do que há de mais odioso em nossa condição e que, por meio das narrativas infantis, encontram uma brecha na pesada barreira do recalque para alertar nossas crianças que a vida não é para amadores e que exige que pisemos leve e não confiemos demais. “O mundo não vale o mundo” disse Drummond e poderiam dizer, se perguntados, os contos dos Irmãos Grimm ou as fábulas de Esopo ou de Andersen (o gigante dinamarquês), obra que meu filho (cuja carne hoje ainda é feita de sonho e vento) haverá de um dia ler.

 

Clarice

O senso comum (horse sense, como chamam os americanos)  insiste em criar histórias, para adultos e crianças, que desprezam o que há de mais inconciliável em nossa condição substituindo os monstros comedores de crianças por histórias sobre pessoas felizes que não conhecem o engano em suas ascéticas trajetórias. Clarice, na contramão dessa índole (como dissemos no início desse escrito) trata de solidão, horror, morte, do eterno problema de nossa incomunicabilidade. Num de seus poucos livros que li (Laços de Família) Clarice levanta a cortina do núcleo familiar demonstrando toda a gama de impossíveis que nos cerca e dos pequenos e grandes crimes cometidos todos os dias. Clarice é uma flor de Lis ardendo em nosso peito lembrando que “nunca fomos felizes” e que, aliás, não somos aparelhados pra isso.

Conforme lemos em Benjamin Moser, seu mais recente biógrafo, Clarice fora concebida para curar sua mãe de uma sífilis incurável transmitida pelos sucessivos estupros de soldados Russos durante a ocupação na Ucrânia. Essa foi a trama que decidiu a presença de Haia (nome de batismo de Clarice) nesse mundo infeliz. Conforme uma antiga crença vigente no pequeno vilarejo de Tchetchelnik, engravidar significava curar-se de qualquer doença. Mania não resistiu e morreu pouco depois de chegar ao Brasil (fugindo da guerra). É a esse evendo que Bruno Moser se refere para argumentar que Clarice é uma missionária falhada: falhada porque não nasceu pra curar, restruturar ou edificar ninguém, senão para exprimir o que há de mais próprio (num sentido heideggeriano) de nossa experiência de estar no mundo. É uma obra onde se percebe a aceitação dos limites e do peso impostos pelo mundo e pelo tempo e um estado de conciliação com o que há de falível em nós próprios. Há paz em Clarice, mas (oportunamente) não há felicidade.

Clarice completa efetivamente 90 anos na data de hoje. Sua obra permanece viva e atual e assim se manterá enquanto houver algum peso que sua escrita ajude a tornar suportável ou alguma ilusão que precise ser tornada desilusão. Morrer é próprio do que é breve e passa sem deixar vestígio, com isso Drummond nos faz pensar que Clarice não morrerá em definitivo. Sua dissipação ocorrerá, fatalmente, mas como uma pluma suave que, com leveza, dissipa-se e vai se perdendo em algum lugar. Como disse a própria Clarice: perder-se é também caminho.

 

(A pluma acima foi colhida no excelente http://queimandoemsonhos.blogspot.com/ de Bia Martins e o vídeo abaixo é o depoimento emocionado das circunstâncias em que foram compostos os versos de despedida de Ferreira Gullar à sua amiga)

15 comentários Adicione o seu

  1. Igor Padrão disse:

    “encontram uma brecha na pesada barreira do recalque para alertar nossas crianças que a vida não é para amadores”

    A vida é para amadores. No sentido estrito do termo.

    Amor Fati, Pedro!

    1. Pedro Gabriel disse:

      Igor, seja bem vindo ao espaço. Apareça mais. Considero pelo menos três sentidos (equivocações) para a palavra amador, que se abre como a valise do Humpty Dumpty em ama-dor. Considero que a vida não é para principiantes (amador) no sentido de que não nascemos com os parâmetros necessários para a condução na vida, tais coisas vão nos chegando pela dolorosa via da experiência. Também não acho que a vida seja feita para masoquistas (ama-dor) ou, recordando a conversa que acabamos de ter ao telefone, para quem não sabe largar o osso. Por fim considero que a vida não é para apaioxonados (amador/amante) no sentido de que ela é traiçoeira e o amor nos faz repetir o caminho de Édipo e terminar os dias cego e maldizendo o que nos fez cegos. Isso em nada coloca em xeque o que você muito sabiamente coloca em seu comentário: amor fati, que poderia ser metacolocado talvez como amor amor fati. Explico-me. Quero dizer com isso que para além da inadequação que o amor representa (já em sua etimologia, a-mor, sem lugar) esse é não obstante o nosso destino. Citando Drummond: Este o nosso destino: https://lituraterre.wordpress.com/2010/08/02/amar-por-drummond/

  2. Karla Linck disse:

    Pedro,
    Lindo e preciso teu texto. Ao escrever preciso, quase saiu “precioso”.
    De tempos pra cá, ler teus escritos parece uma experiência diferente do que antes me parecia. Surge um Pedro Gabriel, de dentro deles. Isso é uma crítica construtiva, embora pareça ousado da minha parte te dizer isso. Muito lindo mesmo, querido.
    Beijo grande,
    Karla.

    1. Pedro Gabriel disse:

      Karla, precioso é o seu comentário. Você falou de uma experiência diferente e de um Pedro Gabriel que surge, só não falou se foi uma diferença pra melhor. rs Mas só o fato de estar mudando já torna isso tudo bom. Tomara que eu consiga seguir me reinventando vida e fora e de dentro de mim (como uma Matrioska) surjam outros Pedros. Beijo imenso e enorme minha amiga tão querida.

  3. Caro Pedro.
    O teu blog é arretado.

    Bravo senhor blogueiro de Olho dágua dos Bredos.
    Sempre pelas manhãs incertas
    quero poder trilhar tuas veredas
    do Catimbáu ao meu Moxotó
    e daí ao infinito de dentro de nós e mais além,
    além do meu olhar,
    além do impossível.

    Marcos Cordeiro

    1. Pedro Gabriel disse:

      Prezadíssimo Marcos: do aquém do possível, de dentro do olho do furacão da inquietude indivíduo-existencial esperarei sua visita. Soube que você é poeta experimentado, que fareja uma idéia como o perdigueiro do Guimarães Rosa pelos imbricados da mata-de-dentro-d’alma. Apareça sempre que quiser. A casa é sua. Sugira temas, critique-nos, divulgue o blog. Pode puxar uma cadeira.

  4. raffaella aureliano disse:

    esse é meu pai… e esse é o pedro, esperarei ansiosa para sentar-me nessa mesa, puxarei tbm uma cadeira … bjs nos dois…

    1. Pedro Gabriel disse:

      E essa mesa? Quando chega?

  5. Aline disse:

    Pedro, que coisa bela!
    As tuas palavras, as referências absolutamente ricas como Freud, Heidegger, a própria Clarice e o fabuloso Ferreira Gullar, tudo contribui pra esse mosaico textual belíssimo.
    Comecei a ler Clarice com “A Hora da Estrela” e não parei mais. Ela é, pra mim, uma escritora mais do que singular. Uma mulher que sabe como usar a linguagem a seu favor, conhece a língua portuguesa e a manipula tão bem quanto um artesão ao moldar sua obra.
    Benjamin Moser disse ainda que, por conta do seu nascimento “forçado”, ela havia dito: “Meus pais me perdoaram por eu ter nascido, eu não”. E isso tá expresso na sua obra que fala, além de tudo, da dor de viver.
    Espero que um dia possamos conversar sobre Clarice enquanto tomamos um café num canto qualquer do planeta.
    Parabéns!! Seu texto é fabuloso.

    Beijos

    1. Pedro Gabriel disse:

      Aline, acho que você captura o essencial da obra de Clarice: ela escreve para não morrer (como ela diz) ou, como você sugere, escreve para contornar a morte (a que ela acha merecedora e cujo peso some no ato da escrita). O psicanalista Rolando Karothy diz que a psicanálise faz falar, e a literatura faz calar. Calar o quê? Essa voz que me obrigou a escrever um soneto quebrado antes de dormir (https://lituraterre.com/2011/12/11/sonoleneto-n-1-ou-o-pedagio-do-sono/). Sobre o café é outra coisa acertada que dizes, temos mesmo muita coisa pra conversar. Um beijo.

  6. Yolanda Silva... disse:

    Lindo…

    1. Pedro Gabriel disse:

      Na beleza que você atesta fica um pouco dos seus olhos.

  7. Betânia TAvares disse:

    Obrigada por me achares… Há luz no fim do túnel! Para ensaiar minha cegueira. Obrigada por me achares! Grande abraço.

    1. Pedro Gabriel disse:

      Cara Betânia, entendo seu comentário como um agradecimento a Clarice por, de algum modo, ter caído em suas mãos e em seus olhos. Mantenho a mesma gratidão a Drummond, Jobim, Joyce e Guimarães Rosa. Eu verdadeiramente não sei o que seria de minha vida sem esses heróis. Um abraço retribuído.

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