Sou onde não penso. Penso onde não sou.

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“Penso onde não sou. Sou onde não penso” diz a célebre afirmação de Lacan, no bojo de seu 15º seminário. A sua declarada anti-filosofia ganha imensa força a partir do seminário da Ética (7º seminário), quando a distingue de toda forma de moralismo universalisante como as noções de patriotismo, família, acerto, cura, performance, mérito, humanidade, direitos humanos, luta política, ou seja, todos os novos esconderijos do velho Eu. Fundar a Psicanálise em qualquer forma de bem (seja o bem total platônico em que se fundava a direita ou o bem comum do marxismo bolchevista em que se fundou o maio de 68, o qual Lacan, tonitruantemente, recusou) produz uma negação do Real e o que ele nomeou como falsa Psicanálise. Onde está o analista? Propondo identidades para seus pacientes ou para o mundo? Produzindo normas ou anti-normas? Produzindo enunciados? Transido de amor ao mundo? Acrescentando outros véus ao que deveria ser atravessado? Esse não é o analista, mas o psicólogo do Eu (ainda que perversamente se expresse com a terminologia e o jargão analíticos) e essa postura de inserção não serve senão à sua resistência em ouvir. Isso nos garantem Lacan e Freud e esses nomes, em definitivo, devem nos dizer alguma coisa. Cada palavra produzida por um analista não se faz senão por furto, por captura indevida da palavra que pertence ao analisante. O que pode nos servir, portanto, esse anti-cartesianismo (que se opõe ao “Existo ao pensar” cartesiano) para além da produção de um discurso genérico e vazio de transformação de mundo? Simples: a proposição reiterada e renitente posta por Lacan desde o primeiro dia de seu ensino de que há um imponderável recusado nas relações de toda sorte. Um imponderável que ama ocultar-se (como propôs Heráclito) e produzir sua própria negação. Um imponderável que nos põe na marcha da repetição como cães que ouvem seu apito, um fervilhar de ocos que causa a Histó(é)ria do sujeito e para o qual deve se orientar uma análise. A esse imponderável não se pode chegar sem o atravessamento dessa corrente de véus a que chamamos de eu. Com a brilhante ideia de convidar o analisante a deitar-se no divã, apaga-se a imagem do outro, o i(a) no grafo do espelho, que representa a pessoa idealizada do analista, e I(A), o ideal do Outro, tenderá a ocupar seu lugar. Aí as coisas são agenciadas não em função de um Eu e seus enunciados que fundam a existência em uma identidade, mas em eu atravessamento. Sou ali, justamente onde posso não pensar. Inexisto em afânise sempre que reafirmo uma identidade, visto que toda identidade é um jugo que nos foi posto pelo I(A) ali, no divã, evocado na transferência como a um demônio oriundo de um distante passado para que as coisas sejam definitivamente acertadas e refeitas. Para isso fomos feitos, para isso, nós, analistas, não pensando existimos, para o mesmo que cantou Vinícius de Moraes em seu “poema de Natal”: para testemunhar o milagre do novo que surge de um divã sem “Eu”, para a participação na Poesia que faz de cada analisante um autor, para ver (sem espanto ou medo) a face vencida da morte que se disfarça de repetição.

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