A Noite Dissolve os Homens (por Drummond)

“A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda, sem esperança…
Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo… O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.

Aurora, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes,
vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam
na escuridão
como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio…

Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.”

13 comentários Adicione o seu

  1. Carla disse:

    Pedro, eu simplesmente ADORO as seleções de imagens que você faz para ilustrar as preciosidades que você publica!;)

    1. Pedro Gabriel disse:

      Obrigado pelo comentário, pelas visitas frequentes (que conforme a Nova Ortografia perdeu acento e trema) e pela apreciação. Eu acho que o poema, o comentário e a imagem devem soar em consonância como um acorde perfeito. Tenho prezado pelas imagens mas devo confessar que essa imagem está especial. Eu havia preparado um outro post para ser publicado logo em seguida, falando sobre cartas e telegramas, mas a imagem deslumbrante (que me lembra as noites no sertão) se impôs como imagem de topo de modo que ficará lá algum tempo. Obrigado mais uma vez, apareça sempre: a casa é sua e a noite é nossa.

  2. Wilza disse:

    Fico imaginando quem diz não gostar de poemas. Difícil compreender, especialmente quando lemos um trabalho assim. É simplesmente perfeito. Conseguir descrever a vida, o cotidiano, como uma pintura (seja ela, romântica, impressionista, expressionista…) usando apenas (!) palavras… É bom demais. 🙂

    1. Pedro Gabriel disse:

      Prima Wilza. Obrigado pelos comentários. De fato a leitura de autores como o Drummond que com sua poesia penetra bem profundamente nos abismos de nossa condição nos proporciona um diálogo íntimo e próximo com autores que amamos e que pela força das aspirações comuns são como entes queridos de uma mesma e imensa família. Nós dois, aliás, pelos nossos gostos semelhantes em termos de música e poesia somos praticamente primos de um laço de letra (mais sólido que o de sangue). Apareça sempre.

  3. Rosa disse:

    Gostei muito de ler esse poema, como tantas outras pérolas que voce posta. Puro deleite, obrigada.

    1. Pedro Gabriel disse:

      Rosa, obrigado pela visita e pela participação. Saber que existem outras pessoas que apreciam os mesmos textos que nós (esse intercâmbio) é o deleite maior que esse blog propicia. Apareça sempre.

  4. peteskid disse:

    a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
    nas suas fardas.

    quem eram os Admirals? por que Drummond aponta para eles, uniformes brilhantes?
    who were the Admirals? why did Drummond point to them, shiny uniforms?

    1. Pedro Gabriel disse:

      Hi Howard, welcome to my blog and thanks for the comment. My apologies for the delay in responding you, but i was too sick and away from de blog. But, i am back, now. Sorry for my terrible english too.

      How about your question, “Almirantes” (Admirals) was high-ranking military that ruled (commanded) the country and their uniforms was the major symbol of power. I think Drummond said that even the leaders of the world there is the night, there are the sad, the miss, the smell of death.

      See you.

      Pedro

  5. Claudio Gomes disse:

    Carlos drummond não precisa comentários suas próprias palavras ja diz tudo, abrangem a nossa alma e o Universo de forma indiscritível. Ele é o eterno Gênio do Mundo com suas Fascinantes falas.

    1. Pedro Gabriel disse:

      Claudio, nem Maria Julieta teria dito melhor sobre Drummond. De fato ele exerce sobre nós esse fascínio encantador que faz com que ele funcione como um membro de nossa imaterial família. Grato pela visita e pelo comentário gentil.

  6. kcenesum disse:

    Acredito ter encontrado esse poema no momento certo, me atingiu em sua totalidade, vivo isso no meu intimo e observo o mundo viver do lado de fora, quando chega a “noite” todos somos iguais, acabando com as preocupações mundanas e junto vem o desespero de quem vive somente para elas.

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