“Meu coração tem um sereno jeito,
E as minhas mãos o golpe duro e presto.
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito,
É que há distância entre intenção e gesto.
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.
Quando me encontro no calor da luta ,
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa,
E se a sentença se anuncia bruta,
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa!”
Os versos acima, do cineasta moçambicano Ruy Guerra, compõem fragmento de pungente importância em Fado Tropical, música composta por Chico Buarque para a peça Calabar ou O Elogio da Traição. Registro-o em meu blog no aniversário de uma amiga querida que o tempo ensinou a por ela me permitir amar. Essa última sentença, que conta de nosso intercurso fraterno, não é menos complexa do que os caminhos que nos uniram. Mas no presente do que incessantemente se presentifica ela é uma companheira fiel, eternamente atormentada com os horrores testemunhados todos os dias nesse país tão intenso. Sua delicadeza que hoje é celebrada aniversariamente encontra uma bela expressão nos versos do Ruy que demonstram o inevitável conflito dos que se pretendem doces: precisar a todo instante (re)domar a fera que em nós ameaça devorar. Não conheço em profundidade a peça e do seu roteiro tenho apenas uma idéia aproximativa, entretanto (ou exatamente por isso), dou-me ao luxo de atravessar a nuvem das interpretações políticas que circundam a composição dessas obras (Calabar e, especificamente, Fado Tropical) e puxo a poiesis pelo dedão do pé da palavra e a entendo, já desde o título, como Traição. Assim é a vida. Nessa agitação feroz e sem finalidade (Bandeira) traimos antes de mais nada a nós próprios quando, desencontrados dos lugares que imaginariamente nos colocamos em nosso discurso, não alcançamos nossos ideais mais elementares. Traimos a todo instante quando replicamos no outro os traços de nossas humilhações pretéritas, quando odiamos em nome do amor, quando mentimos diariamente as nossas maiores verdades. Traimos a nós próprios quando perdidos nas ocupações ônticas e práticas fugimos de nosso poder-ser-propriamente diluídos numa massa barulhenta e sem identidade. Mas sobretudo traímos a nós mesmos nas armadilhas que nosso narcisismo consumista e voluptuoso nos prepara quando, por tudo e por nada (por nada, geralmente) negligenciamos companhia verdadeira e antiga em nome de qualquer nova presença. É em nome do reconhecimento do apreço pelo que há de epifânico em algumas relações, as de perto e de longe, do Brasil ou de Israel, do mundo real ou do real-virtual, as de antes e de hoje, que homenageio no aniversário dessa borboleta azul todos os presentausentes que a despeito de toda e qualquer forma de traição se mantém como uma concha aberta a recolher a prata caída das estrelas e iluminar a escuridão de nossa noite pessoal. Com a palavra Chico.
Ô Pedro,
Como sempre, teus posts…
Só agora li essa nova postagem, tive uma surpresa desagradável hoje que quaaaaaaaaaaaaaaaase me cegou para esse lindo regalo;)
O que dizer? Lindo, Profundo, Verdadeiríssimo e, por isso, Tocante=)
Acho que esse vem pra mostrar que tu é quem fazes parte do meu “kit”, já mencionado antes…
Abraço apertado!=*
Carla, mas esse é o argumento nuclear deste blog, que nossos dias e noites estão repletos de desagradáveis surpresas… mas é possível contornar… possível não estancar… possível ir adiante. Bjo.
opa pedro,
sempre que o coração pedir estarei por aqui!
obrigado pelo blog,
abraço
Caro Diego, quando entrei no seu blog para conferir o pingback eu notei que ele já estava nos meus favoritos e no meu histórico. Somos de casa então, de casa a casa. Grande abraço.
Pedro: na vigia poética da verdade de ser.
Um beijão!
Querida companheira do caminho do bosque, seu comentário engrandece este blog e minha vida inteira. Beijos.
Profundo e verdadeiro, a expressão do ser e estar nessa vida de conflitos diários…
linda homenagem!!! Bjo
A vida, esse imenso emaranhado de conflitos, pode-se viver com poesia e encantamento.
Agradável surpresa… encontrar esse recanto na blogosfera.
Abraço pra você, Pedro. De agora em diante estarei por aqui.
Victor
Prezado Victor, é um enorme prazer ser descoberto por quem reconhece o valor do poema, do poder transformador da palavra proferida. Apareça sempre, será ua honra tê-lo por aqui.