Nando e as Águas

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Nosso Fernandão tinha beleza pulsando dentro do peito. Era indivíduo saltado de um conto de Guimarães Rosa, como um personagem da margem terceira: “homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação”. Esse era o nosso Fernandão.

Foi a pessoa mais doce que conheci: com sua pena molhada duplamente ora na inteligência cultivada por sua voraz leitura, ora no seu úmido coração afofado pela a generosidade que um corpo incansavelmente doente ofereceu ao seu espírito em substituição ao ressentimento que sempre desconheceu.

Ocorre que esse pai ordeiro e cumpridor, formador de incontáveis mentes dessa cidade impiedosa, cansou de remar e foi tragado pelo rio que por toda vida navegou com tanta beleza e elegância. Faltou-lhe “a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro”. Faltou-lhe forças e escorregou no escuro e nós, seus amigos, não estávamos por perto para armar um foguinho de margem ou acender um solidário fósforo.

Os tempos seguiram mudando no devagar depressa dos tempos, mas teu afeto era sempre reto, constante e clássico. Estava lá, como sempre esteve. Em nossa pressa achamos que ele esperaria por mais dez anos. Que fizemos abandonando-te, Nando?

“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação”.

Sua partida nos entristece, nos diminui a todos. Nós que o amamos sofremos o grave frio dos medos, imenso como a gratidão que pessoalmente sinto pelo enorme que sua inteligência generosa fez por minha formação intelectual e humana.

Há meses nos prometíamos uma taça de vinho, umas conversas sobre literatura e inglaterrismos. Não deu tempo, Nando… Nando, não deu tempo…

5 comentários Adicione o seu

  1. Clegiane Santos Bezerra Dantas disse:

    Que texto lindo e sensível, Pedro! Fiquei emocionada.

  2. Cecilia Zanon disse:

    Linda homenagem ao amigo que partiu. A vida são dois dias, ás vezes, três! Somos impermanentes, precários mas podemos amar. Essa, creio eu, a vingança maior. Meus sentimentos.

  3. Anônimo disse:

    Triste notícia, grande perda. Obrigada pela linda homenagem ao Fernando!

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  4. O coração que fica levará não a falta do fim, mas as riquezas de todo meio.

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