José, para onde?

Em ao menos dois intensos e pungentes momentos o grande itabirano viu-se encarnado em sua emblemática e imaginária figura José. Há um José em cada canto de nossa vida. De cada curva de nossa alma José nos espreita com olhos bem abertos sussurrando-nos em voz incompreensível sobre as recorrências da falência das lavras de ouro e do quebrar dos ternos de vidro. A vida nos faz Josés atormentados com grandes e pequenas demandas cotidianas e mesquinhas da vida (desde os pneus furados às mais dilacerantes injustiças). É certo que para que um autor da grandeza do nosso Carlos não seria necessário ser ele próprio um José (ao menos não em todo o tempo). Um poeta escreve sobre o que necessariamente não sente, seu ofício consiste não em desabafar ou expressar um mundo interior e oculto senão o de criar tais mundos para que neles vejamos composta a nossa natureza no que há de comum e solidário na nossa lamentosa espécie. No caso de Drummond, ao menos por dois momentos (repetidos ritualisticamente com um intervalo  preciso de 60 anos entre eles) o poeta se viu “sozinho no escuro qual bicho do mato” sem teogonia e sem seu cavalo galopante pra ter pra onde fugir. Desesperado, em toda a materialidade aguda e sufocante que o desespero humano promove (no sentido kierkegaardiano, do deparar-se com a impotência existencial e a finitude), registra por duas vezes em uma folha de papel a perda de um filho.

Em 1927, na primeira das vezes, lemos em seu diário: “Meu filho Carlos Flávio nasceu às 4 horas e 15 minutos do dia 21 de março de 1927, segunda-feira. Deus o proteja em toda sua vida. 21-III-27 às 4 e 35 da tarde.” Emendaria logo em seguida: “Meu filho Carlos Flávio morreu às 4 horas e 45 minutos do dia 21 de março de 1927, segunda-feira. 22-III-27, às 10 horas da noite”.

O fantasma de tal evento o perseguiria por toda a vida e sua repetição, em 1987, quando da morte de sua filha Maria Julieta, o levaria a morte, pois um poeta quando perde a vontade de escrever, morre (como ele próprio afirmara). Na luta contra a extinção da letra e de si próprio, escreve em duas ocasiões (nos poemas que transcrevo abaixo) antes de, com as duas mãos levadas ao rosto, descobrir que também em sua vida o céu estava morto e saqueado e ele próprio encerrado. O poeta vive, apesar. Ama, apesar.

SER (por Carlos Drummond de Andrade)
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“O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste
contudo chamava-te

como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.”

 

O QUE VIVEU MEIA HORA (por Carlos Drummond de Andrade)
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“Nascer para não viver
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol-e-chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do Juízo Final
não reste em qualquer átomo
nada de uma hipótese de  existência.”

7 comentários Adicione o seu

  1. Joana Macedo disse:

    Carlos Drummond de Andrade expressa o melhor da poesia no Brasil. A imponência e o atributo marcantes de sua obra não permitem qualquer tipo de julgamento planejado. Quanto mais se ler Drummond, mais se penetra na sua obra.
    “A obra de Drummond alcança — como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou Murilo Mendes — um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo da História, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas, ou prospectivas”, afirma Alfredo Bosi (1994).

    1. Pedro Gabriel disse:

      Joana, obrigado pelo seu comentário e pelo fragmento de Alfredo Bosi. Acho no entanto que ele supervalorizou Murilo Mendes e Jorge de Lima ao compará-los com Drummond, que tem um talento universal em sua escrita. Um abraço.

  2. Marijô disse:

    Nesse intervalo de 60 anos, que você aproxima tão bem e precisamente, Drummond enfrentou seus fantasmas no território de luz da poesia a criar e recriar em máxima profundidade nossos dramas humanos: um bom combate! Há um azul de voz maternal que se soma ao sentimento da paternidade. E perder filhos é algo irreparável, tanto quanto dói: ” Apóia em meu ombro / seu ombro nenhum.” Obrigada Pedro, por encontrar aqui um momento tão triste quanto belo.

  3. Pedro Gabriel disse:

    Marijô, há sempre beleza na tristeza. Obrigado por partilhar comigo o seu segredo: o de que voz de mãe é azul.

  4. Brilhante texto! Drummond começou a morrer, apesar de viver, após a morte Maria Julieta. Conheci Drummond em 87, no samba da Mangueira – que sei até hoje, de cór. E isso vem de um portelense!

    1. Pedro Gabriel disse:

      Thiago portelense, grato pela visita e pelo seu emocionado comentário. Nascemos e morremos muitas vezes no decorrer de nossa existência. A arte torna melhores os renascimentos.

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