
A curiosa história do sagrado grão comporta alguns fatos pitorescos. Boa parte deles no Brasil. Por razões comerciais (dessas que aqueles que, não tendo estômago de aço, preferem jantar a compreender), entre as décadas de 30 e 40 era proibida, nos Trópicos Incompreensíveis, a fabricação de pão de puro trigo. Um Decreto-Lei (cito o decreto de nº. 26, de 1937, trazendo para esta postagem toda a imponência que a referência a números, leis e datas confere a um escrito) criou o esquecido Serviço de Fiscalização do Comércio de Farinhas. A solene instituição nascia com a finalidade de impulsionar a cultura da mandioca e a montagem de fábricas de farinha que não de trigo. Sua medida era única e fatal: em terras brasileiras, até onde alcança o implacável braço da fiscalização, estava proibido em caráter veemente a fabricação do pão puro, por força de Lei e sob a pena de multa, prisão e, quiçá, decapitação em praça pública. Desse modo o pãozinho deveria ser misto obedecendo a receita de 70% de trigo completado com 30% de ingredientes sucedâneos. A crônica imortal de Rubem Braga, escrita em 1946 e adequadamente nomeada de Louvação, nasce do alarde criado pelo zelo purista de um padeiro carioca que exercia seu ofício na zona norte da cidade, numa humilde padaria em Brás de Pina. Recusando-se a fazer vezes de diabo e amassar seu pão misturado a farinha de milho ou arroz, o tal padeiro ameaçava a paz e a ordem nacionais vendendo saboroso pão fresco feito de branco e puro trigo. O destino deste herói nacional se perdeu na curva do tempo, entretanto permanece e permanecerá a Louvação de Braga a esse seu gesto incomum e inolvidável.
Louvação [Fragmento]
“Glória a ti, padeiro de Brás de Pina, padeiro do pão puro. Entre o falso leite, a falsa arte, a falsa crítica de arte, o falso dinheiro do governo, a falsa palavra do político; entre a falsa mulher, a falsa meia de nylon, a falsa companhia e a falsa democracia – glória a ti. Megulhamos no frenesi das falsificações; nossos panos são de falsos tecidos, os sapatos de falso couro, as garrafas de falsa bebida, as palavras de falsa moral. Há orquestras tocando falsas músicas e oradores com voz embargada, pela falsa emoção; e o chefe de polícia resolve punir falsos crimes. Os partidos fazem uma falsa coalizão ou se colocam em falsa oposição ou hipotecam falso apoio; e todos comem falsa manteiga, bebem água de falsa pureza e tomam falsos banhos sem água. De tudo isso nos queixamos aos falsos amigos; e todos nos fazem falsas promessas, e nos oferecem falsos banquetes; quando tudo piora, o povo na rua promove falsos distúrbios, quebrando falsos artigos de falsos comerciantes. Tu, só tu fazes o pão puro. Às escondidas, nesta cidade pecaminosa; contra as posturas municipais e contra os costumes; é aí, na penumbra de Brás de Pina, que forma a tua massa pura e a levas ao forno de verdadeiro fogo do ideal, ao fogo do teu coração.”
Ouça abaixo narração dramatúrgica (ou tanto quanto é possível ao narrador) da íntegra da crônica na voz do ator Edson Celulari.
Infelizmente a falsa democracia ainda permanece. Mas uma coisa de cada vez.
Continuará enquanto a cisão for nossa marca demasiado humana.