O meu próprio Rio

Barqueiro desconhecido transitando solitário por sobre o profundo leito do São Francisco

Resido num condomínio de nome gracioso: Morada dos Rios. A cada bloco compete o nome de um rio europeu célebre: Danúbio, Tamisa, Sena, Tejo e (o mais longo rio europeu onde reino silencioso lá do topo da pequena torre de nome) Volga. São estruturas de concreto que se tornaram significantes de algumas das maiores belezas naturais do velho mundo. São talvez as criaturas mais nobres da região (contando inclusive com os integrantes vivos) visto que são os únicos cujos nomes já constaram em romances desses que não serão varridos pelo tempo. Além de gracioso é bastante silencioso. Claro que sua tranquilidade é medida em termos relativos ao que se constitui na média geral dos ruídos cacofônicos os quais temos de aturar todos os dias no saturado e infernal cotidiano nessa cidade incivilizável. Recife é um imenso acampamento urbano carente de regras elementares de convivência, um triste amontoado urbanístico sem o mínimo planejamento onde impera a norma de que os incomodados devem (em todas as esferas) sempre recolher as suas coisas e se mudarem mais para longe, para onde não atrapalhem com suas demandas de organização. São muitos os absurdos cotidianos testemunhados da minha e de todas as janelas que dão para esse bordel que alguns chamam de cidade (e que somente reproduz em zoom todas as “virtudes” nacionalistas já tão bem documentadas pelos nossos intérpretes que não se cansam de desenhar (e desdenhar d)o brasileiro típico). Por essa razão uma tranquilidade relativa é já uma fortuna bem razoável e, ao menos nesse sentido, sou um sortudo com as duas mãos bem cheias. Consigo o que é raro por essas bandas: passar semanas inteiras sem ser acordado por reforma no andar de baixo ou por barulho em casa de vizinho. Vivo em paz minha existência monástica ao lado dos meus autores e escritores favoritos tão longe quanto possa dessa massa barulhenta e estúpida que entope essa cidade. Vivo isolado e solitário em meu rio, navego balançando em paz na minha rede sempre trazendo no colo alguma jóia colhida da prateleira. Meu rio me conduz em dias de sol ou noites de chuva rumo à libertação que o silêncio e a solidão promovem. Meu cubo de trevas é o casulo de onde emergirei livre do maior dos fantasmas: o reconhecimento do outro, o sucesso, o sim dos pequenos e grandes outros. Mas, como disse, minha paz é relativa e como todo brasileiro não consigo ler Drummond sem que tenha que, ocasionalmente, desejar possuir um canhão quando me deparo, de minha pluvial janela, com alguns dos muitos incômodos que qualquer pessoa de maior sensibilidade se depara a todo instante nesses trópicos tão intensos e tão incompreensíveis: alarmes de carro na madrugada, carroças de CDs pirata com capacidade sonora pra estrondar três quarteirões, caminhão do gás, vizinho ouvindo brega ou roque no último dos volumes. A vida nesse país exige dos viventes o status de sobreviventes que não podem exigir mais do que um mínimo de tranquilidade que sempre se sabe mais ou menos passageira.

Miles Dewey Davis Jr. capturado pelas lentes de Tom Palumbo

Temos o infortúnio de viver, como diz Modesto Carone, num país Kafkiano: nada do que acontece é demasiado absurdo para se crer, nenhuma história contada suscita incredulidade, mas antes uma expressão do tipo: “ah, mas isso não é nada, já vi coisa pior, você imagina que outro dia…”. Hoje o inusitado me visitou e nesse país o inusitado por excelência é a delicadeza. Tão inusitada foi a delicadeza que eu, que já tinha amarrado os cadarços do teclado por hoje, imaginando que meu retorno aqui nesse espaço seria para registrar o aniversário de Tom Jobim, fui convocado de volta à tela para registrar o susto que tomei. Confesso que um gato voando com asas de grifo entrando pela minha janela não teria causado maior espanto. O que veio, no entanto, possuía muito mais graça que o híbrido mitológico descrito, a visitante foi a esperança que chegou assumindo a formosa estrutura de uma melodia de Jazz. Enquanto preparava meu desjejum ouvi ao longe, de algum “rio” que não pude identificar ao certo, a incondundível surdina de Miles Davis, a mesma que consegue rachar com sua firmeza desconcertante qualquer muro de tédio ou desencanto que ocasionalmente me emparede. O ruído era longíncuo como que rasgando impiedosamente nosso véu de ignorância. Era inegável: nalgum canto desse amontoado de rios se ouve Summertime. Meus ouvidos calejados de descrença musical foram procurar, dentro de minha própria casa, a fonte desse som. Não era eu. A música definitivamente vinha de fora e quando se encerrou e emendou-se com Oh Bess, Oh Where’s My Bess? o susto transformou-se em emoção incontida: algum vizinho está ouvindo os irmãos Gershwin, escutam a ópera jazzística estadunidense “Porgy and Bess”. Desejei nesse instante ter a casa limpa, comida pronta, convocar os tais vizinhoe e todos os meus amigos para, ao redor de minha mesa, testemunharem comigo aquele sinal de que nem toda a esperança encontra-se proscrita. Ser visitado por esse álbum, sentir entrando-me pelas frestas da casa e do corpo a delicadeza e o romantismo do enorme amor do aleijado Porgy por sua amada Bess, me fizeram crer naquela que é nossa única (e não pouca) razão de esperança: que em nossa navegação (invariavelmente solitária) possamos descobrir que algum barqueiro de algum rio próximo possui rota semelhante e que podemos, talvez, navegar um pouco mais próximos a ponto de podermos partilhar experiências sobre os dificultosos trajetos ou notícias de terra firme. Acordem todos, acordem de seus pétreos e mesmos sonos. Ouçam as canções imortais que (para emplacar numa só sentensa duas referências pessoanas) nos tiram da condição de cadáveres adiados que procriam para o lugar de deuses que assim o são simplesmente porque não se pensam. Reunamo-nos, irmãos da imensa família das belas obras, e construamos uma pequena resistência de delicadeza e etiqueta (pequena ética) ante toda a crueza e futilidade de nosso cotidiano ressequido e sem águas de navegação. Que em nós atualizem-se todos os amores impossíveis e que nós, aleijados como Porgy, possamos amar uma Bess e como Ulisses ter uma Ítaca pra onde querer voltar. Cantemos, dancemos, perdoemos, fruamos todos os dias das melhores canções sem adiar para amanhã o que pode ser hoje mesmo motivo de comoção e de seguir adiante. Eu, Pedro Barqueiro, navegando na solidão imensa de meu Volga em meu curso indeterminado, encerro aqui meu diário de bordo da sagrada madrugada de terça-feira, 25 de Janeiro de 2011, aniversário de Santo Antônio Carlos Jobim.

4 comentários Adicione o seu

  1. Viviane disse:

    Oi, Pedro Barqueiro!
    Muito, muito linda e delicada a sua série sobre o “rio”.
    Um belo dia com todas as cores e delícias do Recife pra vc.

    1. Pedro Gabriel disse:

      Queridíssima Vivi do Balaio Rico e Bonito. Grato pelo retorno generoso e pelos bons desejos que aqui são retribuídos. Um dia delicioso também pra você.

  2. A gente abre a janela e parece que jamais poderemos vencer. Da cidade as vezes a gente desiste, e outras ela nos convence que ainda é possível.

    1. Pedro Gabriel disse:

      Não estou certo de ter bem compreendido seu comentário. Em todo caso considero que as forças de superação do desafiador do cotidiano são mais facilmente identificáveis em nós próprios. A cidade é uma colheitadeira de esperanças. P.S. Colheitadeira: aquela que tritura a plantação, que ceifa o que nós brotamos de melhor.

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