“Mar que ouvi sempre cantar murmúrios Na doce queixa das elegias, Como se fosses, nas tardes frias De tons purpúreos, A voz de minhas melancolias: Com que delícia neste infortúnio, Com que selvagem, profundo gozo, Hoje te vejo bater raivoso, Na maré-cheia de novilúvio, Mar rumoroso! Com que amargura mordes a areia, Cuspindo a baba…
Categoria: Vida na Polis
Verdade (por Carlos Drummond de Andrade)
“A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram…
Eu sei, mas não devia (por Marina Colasanti)
“Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a…
Das Vantagens de Ser Bobo (por Clarice Lispector)
“O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fa- zendo. Estou pen- sando.” Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída…
Hunger ist Heilbar (por Erich Kästner e Drummond)
“O homem entrou no hospital e disse: “Não me sinto bem”. Então, extraem-lhe o apêndice e lavam-no com formol. “Sente-se melhor?” Responde: “Não. Mas os médicos dão-lhe coragem e cortam-lhe a perna esquerda, garantindo: “Agora vai ficar bom”. Continua a sofrer, no entanto, e enche de gritos o hospital. Para descobrir o que pode ser,…
Recado ao Senhor 903 (por Rubem Braga)
“Vizinho, Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que…
Breve história do trigo e da falsidade
A curiosa história do sagrado grão comporta alguns fatos pitorescos. Boa parte deles no Brasil. Por razões comerciais (dessas que aqueles que, não tendo estômago de aço, preferem jantar a compreender), entre as décadas de 30 e 40 era proibida, nos Trópicos Incompreensíveis, a fabricação de pão de puro trigo. Um Decreto-Lei (cito o decreto…
Dois depoimentos sobre a lágrima nordestina
Toninho Vaz (“Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto” – Ed. Casa Amarela) [Em 1979] (…) “, Caetano compõe e grava Cajuína, escrita depois de uma visita a doutor Heli, em Teresina, que lhe deu a rosa pequenina colhida no jardim da casa, na Coelho de Resende. Sobre esse encontro, doutor Heli diria: “O…
O Fantasma de Arcoverde
Um relâmpago me atinge bem agora em algum canto verde da alma. Chega um momento na vida de um homem em que ele simplesmente senta numa poltrona e se dá por recordar (Drummond again). O relâmpago é imagem desse movimento inevitável que des-esquece coisas dentro de nós iluminando cantos sombrios. Em meu caso o canto…
