A Maldição da Letra

A letra é uma maldição. A letra e suas filhas: a literatura, a poesia, a filosofia. Juntas são um espinho cravado na carne, um colorido distinto nos olhos que nos transporta a visão sempre para o que na vida não funciona. O pequeno conto de Voltaire abaixo é muito expressivo do milenar dilema entre a felicidade e o entendimento. O mundo (essa grande negociata) é um pequeno espaço onde se estreitam pessoas barulhentas que acharam de se pavonear por uma casca que lhes oblitera a falta de núcleo. Dissociadas de sua imagem (perdida em algum espelho da infância) as pessoas procuram-se desesperada e cruelmente no olhar alheio. Ser feliz parece ser mais importante do que se debruçar sobre as questões fundamentais da existência. Em cada movimento vemos a atualização da pergunta que um dia foi estruturante: o que o Outro quer de mim. Esse parece ser um fantasma inatravessável pelo nosso Tempo. Eis a morte da Filosofia: a livre opção pela ignorância (confundida com a felicidade).

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HISTÓRIA DE UM BRÂMANE (por Voltaire)

«Encontrei nas minhas viagens um velho brâmane, homem bastante sábio, cheio de espírito e erudição;. de resto, era rico, e por isso mesmo ainda mais sábio; pois, como nada lhe faltasse, não tinha necessidade de enganar ninguém. O seu lar era muito bem governado por três belas mulheres que porfiavam em agradar-lhe; e, quando não se divertia com elas, ocupava-se em filosofar. Perto de sua casa, que era bonita, bem ornamentada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu, imbecil e muito pobre.

– Quem me dera não ter nascido! – disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe porquê.

– Há quarenta anos que estudo – respondeu-me – e são quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse estado enche-me a alma de tal humilhação e desgosto, que me torna a vida insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; acho-me num ponto entre duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima idéia da eternidade. Sou composto de matéria, penso, e nunca pude saber por que coisa é produzido o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de marchar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não só o princípio do meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio de meus movimentos: não sei por que existo. No entanto, todos os dias me perguntam sobre todos esses assuntos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo após ter falado. O pior é quando me perguntam se Brama foi produzido por Vixnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito disso, o que bem se vê pelas minhas respostas. “Ah! meu reverendo – imploram-me, – dizei-me como é que o mal inunda toda a terra”. Tenho as mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que ficaram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco: retiro-me acabrunhado da sua curiosidade e da minha ignorância. Vou consultar os nossos antigos livros, e estes duplicam as minhas trevas. Vou consultar os meus companheiros: respondem-me uns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros julgam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo concorre para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Sinto-me, às vezes, à borda do desespero, quando penso que, após todas as minhas pesquisas, não sei nem de onde venho, nem o que sou, nem para onde vou, nem o que me tornarei”

O estado desse excelente homem causou-me verdadeira pena: ninguém tinha mais senso e boa-fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento e mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele. Vi, no mesmo dia, a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez se afligira por saber como era a sua alma. Nem chegou a entender minha pergunta: nunca na sua vida reflectira um momento sobre um só dos assuntos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, julgava-se a mais feliz das mulheres. Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei ao meu filósofo e disse-lhe:

— Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta um velho autómato que não pensa em nada e vive contente?

— Tens razão – respondeu-me ele; – mil vezes disse comigo que seria feliz se fosse tão tolo como a minha vizinha, e no entanto não desejaria tal felicidade.

Essa resposta causou-me maior impressão que tudo o mais; consultei a minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil. Expus a questão a filósofos, e eles foram da minha opinião. “No entanto – dizia eu, – há uma terrível contradição nessa maneira de pensar”. Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, pois, ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não se acham tão certos de bem raciocinar. “É claro – dizia eu – que se deveria preferir não ter senso-comum, uma vez que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar.” Todos foram da minha opinião, e todavia não encontrei ninguém que quisesse aceitar o pacto de se tornar imbecil para andar contente.

Donde concluí que, se muito nos importamos com a ventura, mais ainda nos importamos com a razão. Mas, reflectindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como se explica, pois, tal contradição? Como todas as outras. Aí há muito de que falar.»

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