O Dia da Criação e a Diferença Sexual

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“Adão e Eva no Paraíso”, por Lucas Cranach em 1526

Em nossa primeira infância somos surpreendidos pelo que Freud chamava de penisneid, ou seja, a simbolização da diferença corporal entre menino e menina ou, trocando em miúdos, a incorporação psíquica do que no real da carne surge como não coincidente entre as duas possíveis modalidades de corpo. Os corpos de homens e mulheres não são iguais na fantasia infantil que atribui a um dos lados uma dimensão de falta a partir de uma evidência anatômica. Romildo do Rêgo Barros, psicanalista de primeira grandeza, em um brilhante artigo, nos recorda que a diferença (A ≠B) surge de uma comparação, ao se dizer, por exemplo, que a diferença se sustenta quando há algo em A que não existe em B ou vice-versa. Assim, “comparam-se dois opostos e se determina onde estaria o ponto em que os dois se separam ou que não permite que os dois possam se sobrepor. Uma parte dos atributos de um dado conjunto, A, não pertence ao outro, B, ou vice-versa”. Esse é o ponto onde fraqueja a maior parte das leituras comum dos fragmentos onde Freud atribui quinhão à anatomia supondo ela ser uma espécie de destino: não propunha o imenso Freud que as diferenças corporais determinariam a terminalidade de nossos complexos processos de identidade, senão que organizava um começo. Biologia é destino, não destinação. Qual a diferença? É o modo como se organiza o jogo inicialmente, não seu formato final. Propõe Freud, portanto, que o corpo em sua forma anatômica não é sem efeitos na construção do psiquismo infantil: apenas o começo de um jogo de xadrez pode ser planejado, nunca seu termo. No caso das meninas, conforme propõe Jacques-Alain Miller em seu texto “Mulheres e Semblantes” (Miller, 1993), tal situação representa o verdadeiro sentido da penisneid: “a subjetivação do não ter”. Um “não ter” que subsiste somente nas fantasias infantis, não no real da carne, visto que no real nada falta (à mulher ou ao homem). Tais fantasias são facilmente perceptíveis no jogo infantil, na descrição de fantasias primordiais e nos relatos das reminiscências dos adultos e participam ativamente na construção do que vindouramente se chamará de “eu” e, ainda mais especificamente, “homem” e “mulher”. Diferentemente da maior parte das superficiais reflexões sobre gênero que lotam periódicos da atualidade (onde primariamente se confunde identidade com aparência) os extremos para onde nossa imbricada sexualidade pode conhecer alguma orientação não são dedutíveis a meros papéis sociais introjetados nas crianças na forma de padrões de conduta (isso demonstraram não somente a Psicanálise, mas ao menos uma dúzia dos melhores autores da Filosofia com quem esta ativamente dialoga). O corpo, como construto fantasístico, participa ele mesmo daquilo que se define e se coloca a priori e que faz com que as propostas sociais surjam como exterioridade para a qual a criança constrói uma resposta singular. Homem e mulher não são construções anatômicas, tampouco sociais, mas psíquicas e há um caminho estreito por onde se deve trilhar a fim de se chegar a algum desses lugares e tal caminho não se confunde com a frívola interpretação da boa ou má educação de papéis. Freud e Lacan, com imensa atualidade, sustentam em sua obra um novo paradigma para uma discussão sobre diferença sexual e o gozo feminino (conceito fundamental para se compreender o laço social): il n’y a pas rapport sexuel, não há relação sexual. O coito obviamente existe, o que não há é o fechamento de um circuito de complementação ou de uma correlação onde insígnias masculinas encontrem um correlato na organização feminina. Não há relação no sentido matemático da palavra: os sexos se distinguem. Partindo da fantasia anatômica primordial, a cria humana que chega a este estranho mundo é demandada a construir uma lógica dotada de uma positividade que propõe uma diferença (diferença que não precisa ser hierarquizada ou propor papéis sociais fixos ou previamente determinados para homens e mulheres, a diferença não justifica o imaginário da opressão). Há a diferença, percebe a criança muito prematuramente. A saída para alguns é a denegação dessa evidência e a recusa à sustentação de um sexo (de secção, divisão, de distinção entre eu e outro). Há diferença: diferença enquanto aquilo que entre dois não coincide, que não se encontra, que não contorna nossos circuitos de definições (que são, aliás, nossos dados humanos mais elementares, aqueles que se constituem na matéria prima mais frequente da poesia). As semelhanças entre a psicanálise e a construção poética nunca deixaram de ser salientadas por Lacan e Freud, tanto tematicamente (na forma de indicação de territórios comuns) quando no uso da letra poética nas produções técnicas do que se faz em psicanálise. Exemplo disso é o prêmio Goeth, medalha literária dada a Freud pela beleza poética de seus escritos técnicos, desprovidos, em princípio, de qualquer pretenção literária formal. O tempo presente nos fornece uma outra enorme aproximação entre essas duas produções: em caráter de excessão ao mundo do politicamente correto que estende sobre nossos combalidos ouvidos a tirania da neutralização crítica, psicanalistas e poetas mantém-se, pela força de seus  (não) saberes, livres para ver, ouvir e concluir. Segue o poetinha, Vinícius de Moraes, cantando com liberdade tudo o que Freud e Lacan não conseguiram dizer com verso e samba.

 


I

“Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.”

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Fórmulas da sexuação apresentadas por Lacan em seu vigésimo seminário: Encore (“Mais, ainda” em português).

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